Uma família

marcada pela pandemia

A pandemia deixou milhares de famílias sem um teto. Andrigo, Juliana e as três filhas tiveram que sair da casa que alugavam durante a crise sanitária e agora sonham em ter um lar novamente. 


O Viaduto da Conceição, em Porto Alegre (RS), é um lugar movimentado. Ali funciona um terminal de ônibus onde transitam milhares de pessoas todos os dias. O local também é caminho para o centro da cidade, atraindo muitos veículos para a região. 


Em meio às idas e vindas, há quem teve que fazer deste espaço, morada. Marginalizadas e invisíveis para a maioria dos que passam ali, estão pessoas em situação de rua. Algumas dormem em cima de papelões, outras conseguem improvisar uma “casa” com materiais encontrados pela cidade. Todas sofrem com o frio, a fome, a violência e o abandono. 


Em alguns dias da semana, voluntários de ONGs chegam ao local para levar o que nunca deveria faltar: comida. A preparação e o cheiro dos alimentos prendem a atenção dos moradores, que fazem fila para receber a marmita. 


Há alguns meses, Andrigo (33), Juliana (26), e as filhas Amanda (11), Lívia (5) e Maria Flor (1) aguardavam nessa fila. Viver na rua não chegou a ser a realidade desta família, mas igual a milhões de outras, eles enfrentam uma das mais duras consequências da pandemia: a perda da fonte de renda. Poucos meses depois de ficar desempregado, Andrigo não conseguiu mais pagar o aluguel da casa onde moravam em Viamão, município a 20 km de Porto Alegre. 


“Vendi o carro e outras coisas que tínhamos para manter a casa e comprar comida. Do nada você recebe um tombo tão grande da vida e se vê incapaz de apoiar sua família”, recorda o pai.  


Diante da situação desesperadora, uma conhecida propôs que fossem morar na residência para idosos na qual ela é proprietária. Já com um nível alarmante de insegurança alimentar e com medo de serem separados das filhas, eles aceitaram. Durante os meses que estiveram lá, o casal ficou responsável por muitos afazeres do local, principalmente Juliana, que se tornou cuidadora dos idosos, apesar de não ter nenhuma formação ou experiência na área. O volume de trabalho se tornou tão grande, e sem receberem uma remuneração por ele, decidiram deixar o local e buscar ajuda da rede socioassistencial. 


Encaminhados para uma pousada no centro de Porto Alegre, que em parceria com a Prefeitura, abriga famílias em situação de vulnerabilidade, Andrigo, Juliana e as filhas não tinham que se preocupar com um lugar para dormir, mas continuavam presos a outros fantasmas: a fome, o risco da separação das meninas, o desemprego e a incerteza de qual futuro estaria reservado para eles.


Na simples pousada, a rotina para garantir comida começava cedo. O pai acordava às 6 horas para ir ao POP, Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua. Ficava na fila junto com dezenas de pessoas que buscavam a primeira, se não, a única refeição do dia. 


Depois do café da manhã, continuava a batalha pelo almoço e pela janta. Nessa empreitada, toda a família ia junta. Eles corriam do restaurante popular a outros locais que distribuíam comida e tentavam garantir as marmitas para o dia e para a noite. Às vezes, o plano não dava certo. Quando isso acontecia, os pais enfrentavam seu pior pesadelo: ir com as filhas para o Viaduto da Conceição. 


Nesse universo, até pouco tempo desconhecido para eles, Andrigo relembra o que sentiu ao mergulhar naquela realidade. “Foi como se estivesse sendo destruído por dentro. Quando você chega lá, o cheiro de urina é terrível. Tem pessoas se drogando, ratos. Fazíamos de tudo para não ter que ir lá.” 


No meio desse turbilhão de emoções, os pais tinham uma prioridade: proteger Amanda, Lívia e Maria Flor. Para isso, Andrigo e Juliana desenvolveram muitas estratégias, uma até inspirada na guerra. 


“Uma vez vi uma reportagem de um pai e um filho que tentavam sobreviver à guerra na Síria. Toda vez que uma bomba explodia, ele fazia alguma coisa para distrair a criança e, ao invés de chorar, ela ria. Quando íamos ao viaduto com as meninas, nos preocupávamos em conversar o tempo todo com elas, fazer brincadeiras, chamar a atenção para os carros. Tudo para que elas não sofressem com aquela situação”, relata Andrigo. 


Por um mês, essa foi a luta deles. Até que um dia, no POP, souberam da existência do nosso projeto de acolhimento às famílias em situação de vulnerabilidade: Recanto de Fortalecimento. A iniciativa proporciona acolhimento e um espaço de cuidado para que as famílias possam se desenvolver, construir sua autonomia e fortalecer as relações com os seus filhos, prevenindo assim, a perda do cuidado parental. 


“Quando soubemos do Recanto, ficamos com receio de ir. Nunca tínhamos ouvido falar. Procuramos informações a respeito e decidimos tentar. No dia marcado para conhecer, ficamos contando as horas na pousada. A ansiedade foi grande”, recorda Juliana. 


Naquela tarde, apesar do tempo chuvoso e cinza, o recomeço dessa família foi vibrante, alegre e cheio de esperança. Na recepção, a atenção aos detalhes comoveu os novos moradores. “Fomos recebidos com um bolo de chocolate, estava tudo preparado para nós. Tinha até um berço para Maria Flor, coisa que ela nunca tinha tido antes”, conta Andrigo. 


O desejo de permanecer com as crianças sempre guiou os pais. Ambos têm um passado de separação familiar. Andrigo perdeu a mãe e dois irmãos quando mais jovem e, atualmente, o contato com os outros dois é raro. Já Juliana, engravidou com 14 anos e teve que sair de casa. Há dois meses, ela perdeu pai. 


O significado de família mudou para Andrigo quando ainda moravam na casa de Viamão. O episódio é a lembrança mais feliz do pai de Amanda, Lívia e Maria Flor. “Uma noite estava chovendo muito forte e onde dormíamos eu, a Juliana e as meninas, tinham muitas goteiras, só não caía água no meio do quarto. Ficamos ali, abraçados, esperando a chuva passar. Naquele momento comecei a ser pai de verdade”, recorda. 


Juliana destaca o nascimento das filhas, principalmente de Lívia, que nasceu prematura, com sete meses e meio. “Quando o parto acabou, levaram ela para UTI e não me disseram nada. Só depois de um tempo pude vê-la. Passei a mão no rostinho dela e ela fechou os olhos, como se me reconhecesse”, relembra. 


Há quase dois meses morando no Recanto, a família já comemora conquistas! Com o cadastro para receber o auxílio governamental, eles usaram o primeiro benefício para comprar um celular e uma bicicleta, objetos que possibilitam que Andrigo faça entregas para um aplicativo de delivery de alimentos. 


“Quando você não tem que se preocupar em ir atrás do básico para sobreviver, consegue se organizar para melhorar de vida e planejar um futuro”, resume o entregador. 


E por falar em futuro, essa família sonha em recuperar o que perdeu com a pandemia: uma casa. Essa foi a realidade vivida por Andrigo, Juliana, Amanda, Lívia e Maria Flor. E se tivesse sido você? 



A Aldeias Infantis SOS Brasil lidera o maior movimento de cuidado infantil no mundo para que nenhuma criança cresça sozinha. Como organização global, cuidamos de crianças, fortalecemos famílias vulneráveis, apoiamos situações de emergência e advogamos pelo direito de viver em família em 137 países